(M)Eu, Verso

Da realidade ao poema, estas são histórias inspiradoras que deram forma ao verso.

“E se eu não acompanhar a curva? Assim podia descansar.’ Eu não queria morrer. Só queria parar. Sem culpa. Sem sentir culpa.”

Ler Poema
Burnout
A história real de Rita

“Começar do zero é também um voto de confiança em nós próprios”

Recebe-nos com um sorriso e é assim que se mantém em toda a entrevista. Quando recorda a turbulência, a dor, a incerteza, conta-o sempre com a leveza de quem tem a certeza do que fala, do que passou e de como sobreviveu. Diz-nos isto, perentoriamente: “Eu sou uma sobrevivente.”

Rita passou por um burnout, cujos primeiros sinais lhe eram tão estranhos que ponderou ter uma doença física. Sofria de enxaquecas, insónias, falhas de memória, deixava de sentir o braço. Ao mesmo tempo, a pressão no trabalho aumentava, o cansaço acumulava-se e achava sempre que tinha de fazer mais.

“Quando dormia, sonhava com trabalho, chegava a acordar às duas da manhã para preparar emails.” No trabalho, onde a estabilidade era um fator a ter em conta, e onde fez toda a carreira, já tudo a irritava, mas não conseguia parar. A princípio, diz, e por ter “tendência à depressão”, olhou para os sintomas físicos e mentais como dois problemas diferentes. Fez exames, foi acompanhada, mas “estava em negação”. Consegue recordar, com precisão, a situação que espoletou o grande alerta:

Rita
“Um dia, enquanto conduzia, fiz uma curva e pensei ‘e se eu não curvar? E se for em frente? Assim consigo descansar sem me sentir culpada’. Eu não me queria suicidar, mas já estava em desespero.”
“Um dia, enquanto conduzia, fiz uma curva e pensei ‘e se eu não curvar? E se for em frente? Assim consigo descansar sem me sentir culpada’. Eu não me queria suicidar, mas já estava em desespero.”

Há dois inimigos que marcam presença no discurso e no percurso de Rita: a culpa, vinda de dentro, e o estigma, vindo de fora. A culpa por sentir que nunca era suficiente o esforço que fazia no trabalho, a culpa por não acompanhar da forma presente que queria o filho, na altura adolescente, a culpa por não conseguir corresponder às (altas) expectativas que impôs a si própria.

O estigma, esse, vinha de fora, mas os fatores eram os mesmos: “Validava-me muito pelo lado profissional, era onde tudo corria sempre bem”, sublinha. O que, aos olhos dos outros, apenas poderia significar um diagnóstico errado ou exagerado. Porque uma doença mental ainda é muitas vezes, aos olhos da sociedade, um espetro fechado e em que as capacidades cognitivas ficam todas afetadas: “O facto de ser altamente funcional e de falar abertamente sobre burnout fazia com que as pessoas não compreendessem.”

Ainda assim, Rita lutou contra ambos – a culpa e o estigma –, procurando ajuda especializada e permitindo-se a parar: “Comecei a tomar medicação, fui de baixa, fiquei praticamente um mês apenas a dormir.” Depois disso, e findo o período de baixa médica, percebeu que a verdadeira mudança ainda estava para acontecer.

Era uma relação de amor-ódio. Deixar a empresa foi o meu maior divórcio.

O apoio da empresa onde trabalhava foi total, durante o período em que esteve de baixa médica, e o entusiasmo no regresso também. Para isso contribui a afetividade com as pessoas com quem trabalhava, algumas há mais de 20 anos. Mas a decisão estava tomada: “Decidi mudar de vida.” Sai sem planos a curto prazo, e os primeiros tempos continuaram turbulentos, com uma depressão mal curada e as consequências do burnout. Conta que, nas juntas médicas, a falta de conhecimentos levava à desconfiança e a uma descredibilização, com médicos que pareciam não entender e que a levavam a “sentir como uma impostora”. Mas o burnout é uma doença real. A mesma atitude, por parte de esferas mais próximas, levou-a a questionar-se, inclusive, se seria fraca.

No burnout de Rita, como em todas as doenças, a rede de suporte foi imprescindível. A desacreditação de uns foi colmatada pelo total apoio de familiares e amigas mais próximas, que perceberam o processo e, respeitando-o, tentaram sempre estratégias para a ajudar.

“A infelicidade é total, a questão é como se lida com a infelicidade.”
“A infelicidade é total, a questão é como se lida com a infelicidade.”
Rita

Há três anos a trabalhar noutro ramo, Rita resume o porquê de mudar numa única poderosa frase: “Eu sentia-me a morrer.” A mudança foi, portanto, a única solução, e hoje sente-se feliz e realizada no seu novo trabalho. Faz a gestão do seu próprio tempo, ainda que, assume, continue a não ter assim tanto tempo livre. Está consciente de que “há gatilhos que despertam”, e que reconhece como sintomas que a levam ao burnout. Quando começa a sentir sinais semelhantes, procura ajuda médica especializada. Mas, admite, até “tomar medicação com frequência” tem um lado negativo. Confessa a sua própria dificuldade em gerir a “dependência de um químico”, mas sabe que não teria conseguido dar a volta sozinha.

Define o burnout como uma “depressão profissional” – o dicionário define “síndrome de burnout como um “tipo de esgotamento físico e mental associado à atividade profissional” –, mas acha que ainda se fala pouco do tema, mesmo depois de uma pandemia onde foi mais difundido. Acredita que é preciso mais preparação e conhecimento sobre o tema, tanto por parte das entidades de saúde como das próprias empresas.

Não sente sequer necessidade de personalizar a sua opinião, antes de a globalizar: acredita que, numa economia de consumo, as empresas estão demasiado formatadas para pressionar e rentabilizar ao máximo cada trabalhador.


Para Rita, o ponto crucial para a mudança dá-se quando as empresas perceberem a queda de rentabilidade de uma pessoa que está a passar ou passou por um burnout. E, para o evitar, é preciso uma noção clara: trabalhadores com uma maior qualidade de vida acabam por gerar mais rendimento. Em resumo, defende o equilíbrio: “Somos todos um número para a empresa e, na minha ótica, a empresa também é um número para nós. Mas também somos todos humanos.”

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“Somos como a fénix. Já estive duas vezes em cinzas, e renasci diferente”

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Pedro

Há uma clarividência no discurso de Pedro, ainda que fosse justificável não a ter. Os relatos que nos faz são dignos de filme: há ação, há romance, há quedas e há, na sua perceção, novas vidas. Identifica de forma inequívoca três momentos que considera “estados depressivos ou pré-depressivos”, e a forma como lidou com cada um dos três é drasticamente diferente. Acredita, com a força de quem já se conhece bem, que está agora na sua terceira vida. Comecemos pelo princípio.

O primeiro momento identificado dá-se por volta dos 30 anos, depois de um término de relação. A não aceitação por parte do outro lado levou a que todas as esferas fossem afetadas: familiar, social, profissional. Como consequência, Pedro começou a isolar-se, e passa “dois ou três anos” num estado depressivo, sem nunca procurar ajuda.

Neste primeiro momento, o tempo e a rede de suporte foram as âncoras que seguraram Pedro e que o levaram a um estado de “normalidade”, ainda que admita, à luz do que sabe hoje, que a ajuda profissional seria essencial e permitiria um rumo diferente.

Anos mais tarde dá-se um segundo momento de queda, com vários fatores a contribuírem para ela: a um período de trabalho extremo, com “mais de 16 horas”, soma-se a irreparável perda do pai, o que prolonga e piora o sofrimento. Até que se cruza com alguém que lhe faz ver que o ciclo do luto só se conclui quando se chega à fase de aceitação: “A aceitação é desafiante, porque encaramos de frente com a realidade.” É aqui que, identifica, se dá a verdadeira queda. No final de 2009, estava “emocional e fisicamente de rastos, muito desgastado”, e o período coincide com a notícia que muda todo o paradigma: a mulher estava grávida. Iam ser pais.

“Quando o meu pai partiu, esvaziou-se aquilo que eu tinha como referência.”
“Quando o meu pai partiu, esvaziou-se aquilo que eu tinha como referência.”

Procurou ajuda especializada, como sabia que deveria, escolheu uma psiquiatra “aleatoriamente”, e acabou com uma médica que apenas se focava em medicá-lo. No espaço de seis meses, sentiu-se completamente renovado, mas hoje consegue perceber que o tratamento que fez o deixava num estado permanentemente drogado. Sabe que a medicação pode ser um dos caminhos para tratar doenças mentais, como a depressão, mas acredita que alguém escolheu por ele o caminho mais fácil – e menos adequado.

A vida passou a ser cor-de-rosa, no espaço de dois meses estava fantástico. Estava drogado.

Pedro distingue, no seu percurso, os bons e os maus profissionais que se atravessaram no seu caminho, e como um acompanhamento adequado faz toda a diferença. Quando muda de psiquiatra, três anos depois, é confrontado com a verdade pura e dura: “Com estas doses, o Pedro está a viver uma vida que não é a sua; é como se os seus pés não andassem na terra.”

O que se segue é um período no qual, em três meses, aceita o desafio de largar toda a medicação. O desmame do primeiro comprimido deu-lhe mais sensações físicas: suores, insónias, tremores, falta de força. Mas o pior ainda estava para vir: ao reduzir as doses do segundo, “houve um total desequilíbrio em termos mentais e emocionais”. Com um bebé em casa, e já na última consulta, Pedro admite à psiquiatra – que considera uma das melhores pessoas que se cruzou com ele – que sente “não ter qualquer controlo, a um nível que pode ser perigoso”. É no fim de semana depois dessa consulta que se dá aquilo que considera o verdadeiro momento de viragem.

“Naquele momento pensei: não faz sentido continuar a viver assim. O melhor é arranjar uma forma de terminar com isto.”
“Naquele momento pensei: não faz sentido continuar a viver assim. O melhor é arranjar uma forma de terminar com isto.”

Pedro chegou a ponderar pôr termo à vida, mas num momento de clarividência, desiste e agarra-se ao filho que agora tem. Consegue distinguir o momento de viragem, onde o fim do desmame o leva ao que considera uma espécie de renascer: “Se fosse um gato, com sete vidas, tinha começado ali a segunda.”

Acredita que, atualmente, está já na sua terceira vida. Em 2016, com a separação, dá-se uma nova queda, mas aí tem já todas as ferramentas internas que necessita para recuperar. Nesta nova viragem, procura na acupuntura e na meditação novas formas de não se perder. E percebe que procurar ajuda é crucial, pelo menos numa primeira fase, para “subir um primeiro degrau”.

Há três palavras-chave nestes processos: coragem, aceitação e perdão.

A sua experiência conturbada fá-lo encarar a medicação, para doenças como a depressão, apenas como um passo para “vir à tona e respirar”. Mas acredita que o verdadeiro processo se faz através da coragem – “porque mostrar a fragilidade do ser humano é um grande desafio à nossa condição” –, da aceitação, para se assumir que se está a passar por um mau momento e para se aceitar ajuda de todas as esferas, e do perdão, a nós próprios e a quem possivelmente influenciou aquilo que chama de “estados depressivos”.

Acredita, nestes processos, que há vários tipos de acompanhamento e que as medicinas tradicionais e terapêuticas alternativas podem, em conjunto, mudar o paradigma de tratamento da saúde, mental e física.

A educar uma criança com 11 anos, procura passar-lhe a noção de que viver com a sua verdade, procurando não esconder estados emocionais, o pode fazer mais feliz, mais calmo e mais pleno, mesmo nas situações mais desafiantes.


Acredita conhecer-se agora suficientemente bem para estar atento aos sinais e ser mais preventivo perante as quedas. Sobre as outras vidas que viveu dentro desta, remata: “Estas experiências, apesar de duras e desafiantes, levaram-me à melhor versão de mim. Olho para elas como aprendizagem e oportunidade de crescimento emocional.”

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