(M)Eu, Verso

Da realidade ao poema, estas são histórias inspiradoras que deram forma ao verso.

“Fomos obrigados a reajustar. A aprender a andar de uma outra forma. A fazer do impossível possível. A procurar a liberdade em sítios onde nem sequer sabíamos que existia.”

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A história real de Matilde (e Rute)

“Na água, é como se conseguisse andar”

A vida de Matilde sem Rute, ou de Rute sem Matilde, não conseguiria ser contada. São mãe e filha e cruzam os discursos, completam as frases, adivinham-se nos silêncios. Matilde tem 9 anos – a idade na qual tudo se parece entender – e sabe que isto é sobre ela. Vem acompanhada da mãe, mas diz-nos, sem falsas modéstias: “Eu é que sou a estrela!”

Matilde é igual a tantas outras crianças em muitos sentidos: gosta de falar, de perguntar, tem sonhos que a preenchem e uma honestidade que muitos perdem com a idade. O tempo, para ela, é um conceito relativo. Mas há uma coisa que distingue Matilde de muitas outras crianças: a maturidade, ainda que toldada de alguma inocência, com que percebe que a sua vida nem sempre pode ser exatamente igual à de outros meninos e meninas.

Matilde anda de cadeira de rodas, o que significa que todo o seu dia a dia tem de ser planeado até ao mais ínfimo detalhe por Rute. Para a mãe, a falta de mobilidade acentua-se, porque “o país não os ajuda”. E prossegue: “Se houvesse mais agilidade e facilidade, eles conseguiam facilmente integrar-se, mas tudo é uma luta.”

Matilde
“Quero ser bailarina de cadeira de rodas, fazer o Quebra-nozes.” – [Matilde]
“Quero ser bailarina de cadeira de rodas, fazer o Quebra-nozes.” – [Matilde]

As lutas de Rute são todas difíceis. O lugar de estacionamento à porta da escola, pelo qual esperou dois anos, por exemplo, é muitas vezes desrespeitado por outros pais. Há um certo desconhecimento e um certo egoísmo por parte do ser humano. Rute acredita que “só quando passamos para o papel do outro” podemos efetivamente empatizar e perceber.

As dificuldades são várias: no passeio, com uma cadeira de rodas, os obstáculos são mais do que muitos; na estrada, é perigoso. Uma cadeira de rodas como a de Matilde chega a custar 15 mil euros. Elevadores em casas que não a habitação própria permanente não beneficiam de qualquer apoio.

O discurso de Rute endurece quando fala do papel que a sociedade tem. Para a mãe de Matilde, não é na filha – nem em todas as crianças como ela – que está o ónus da responsabilidade, mas em todos os que não conseguem integrar estas crianças: “A sociedade rouba a vida a estas crianças.” E dá um exemplo muito simples: “Uma bicicleta normal custa 100, 200 euros; uma bicicleta para a Matilde custa 4 mil. Não é uma loucura?”

Há centenas, milhares de crianças com deficiência. Porque é que não as vemos em lado nenhum? Porque os pais são obrigados a confinar em casa. – [Rute]

É por isso que iniciativas como a More Moving Moments são tão importantes para famílias com mobilidade reduzida: conseguem devolver alguma normalidade aos dias, com atividades que nunca deveriam ser postas em causa. Matilde sente-se “como um peixe no mar” e, para os pais, a cadeira adaptada de praia é a diferença entre poderem ou não aproveitar o verão. Até porque, explica-nos Rute, já não era fácil levar Matilde, com mais de 40 kg, da areia para a água, ainda que seja difícil negar à criança as idas ao mar quando a própria o define como o sítio onde “é como se conseguisse andar”.

Se, no ano passado, estas cadeiras estavam em praias específicas e era preciso confirmar disponibilidade, este ano a associação cedeu-lhe uma cadeira durante todo o verão, o que permite que Matilde possa frequentar o ATL, ir de férias e até visitar praias fluviais. Rute comove-se com os gestos altruístas: “Se não houver vontade humana, tudo cai por terra. E, neste caso, houve entusiasmo, houve vontade de ajudar.”

Se dúvidas houvesse da angústia da mãe, no que concerne à autonomia de Matilde, a própria reitera o discurso de Rute: “E depois? E se eu já for adulta e não estiver pronta?” É por isto que o foco dos pais de Matilde está em dar-lhe toda a autonomia possível: para que possa sempre ter um futuro dependente apenas de si própria, autónoma. Ouvir da boca de uma criança a preocupação que nunca lhe deveria toldar os pensamentos é duro, mas é o choque de realidade que a sociedade pode precisar.

“É uma coisa que nos pesa sempre no coração: enquanto cá estivermos, e conseguirmos, fazemos tudo por ela. Mas… e depois?” – [Rute]
“É uma coisa que nos pesa sempre no coração: enquanto cá estivermos, e conseguirmos, fazemos tudo por ela. Mas… e depois?” – [Rute]
Matilde

Dotar crianças e adultos com mobilidade reduzida de estratégias de autonomia, integrá-los em sociedade e permitir-lhes todas as redes de apoios necessárias a qualquer ser humano fará a diferença na vida de Matilde, ainda que já tenha traçado o seu próprio futuro.

Não consegue escolher se é mais feliz dentro de água ou a fazer ballet“porque é que não podemos ter tudo?” – mas sonha em fazer o Quebra-nozes, em fazer teatro, em cantar e dançar. Além dos sonhos no mundo das artes, Matilde tem também sonhos que cabem dentro de onde vive: sonha com uma casa adaptada, onde a acessibilidade nunca seja um entrave.

Como no ballet, os discursos de Matilde e Rute vão-se cruzando num bailado de amor e compreensão de ambas as partes. Matilde, que sabe que muito há para dizer sobre a sua condição, não deixa a oportunidade passar: “Ia ser operada, mas já estamos há um mês à espera que nos chamem!” O tempo é um conceito para o qual a mãe tem ainda de a orientar: na verdade, estão há mais de nove meses à espera de serem chamadas. “É tudo uma eternidade, tudo uma burocracia, tudo uma complicação”, completa a mãe. A criança anima-se por saber que os amigos terão duas pernas de gesso para a ajudarem a colorir, mas negoceia logo: não quer passar o verão com gesso. A mãe acede, em setembro voltam à carga.

Claro que eu gostava de ver a minha filha a andar. – [Rute]
Mas isso nunca vai acontecer totalmente. – [Matilde]


Depois de um dia atribulado, em que a generosidade lhes permitiu partilhar a tão importante história até ao último segundo, deixam a realidade que crianças como Matilde têm de lidar a pairar, enquanto a própria continua a enumerar-nos os sonhos: tem saudades da irmã e quer vê-la; a mãe não se pode esquecer de confirmar se haverá ballet para a idade dela; gosta de fazer teatro e quer cantar e dançar “como a mana”. A pairar fica o desejo de Rute com que todas as mães conseguem empatizar: “Quero sobretudo que ela tenha autonomia. E que seja feliz.”

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A história real de Ana

“É uma força sobrenatural: vou buscar forças onde não sei que existem”

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A história real de Ana

“É uma força sobrenatural: vou buscar forças onde não sei que existem”

Ana

Com 27 anos, Ana é nova, com a vida e os sonhos todos pela frente. Mas também é já sábia, com a experiência que a infância, a profissão e o hobby lhe trouxeram. Vinda de um meio rural, onde, conta-nos, “a vida não foi fácil”, percebeu cedo que teria de lutar por cada oportunidade e por um futuro.

O futuro não estava sequer planeado quando escolheu um curso tecnológico ligado ao desporto, no secundário. De criança, recorda só o “jogar à bola” com os amigos, o “andar de bicicleta” pela quinta dos pais; de adolescente, o desporto como escola.

Findo o ensino secundário, Ana sabe que precisa de “se fazer à vida”, e arranja um emprego na terra natal. Quando abrem concursos para forças de segurança, não pensa duas vezes: candidata-se à PSP e à GNR, faz as provas – para as quais diz nem se ter preparado – e entra logo na PSP.

A oportunidade é, também, sinónimo de uma grande mudança. De um meio pequeno, “onde todos se conhecem”, Ana aterra na capital, onde encontra as suas grandes paixões: a profissão e o ciclismo.

“Quando queremos muito uma coisa, fazemos tudo para a conseguirmos.”
“Quando queremos muito uma coisa, fazemos tudo para a conseguirmos.”

Chegada a Lisboa, Ana encontra-se com alguém que trata como pai, que, de uma pergunta inocente, lhe traça o destino: “Fazes algum desporto?” Não fazia, mas para colmatar saudades e solidão, e como não diz que não a um bom desafio, começa em 2018 uma viagem pelas provas de triatlo. Logo na primeira prova, fica em primeiro lugar no escalão. A prova de triatlo divide-se em corrida, natação e ciclismo, e percebeu logo que havia um gosto especial por esta última, o que fez com que, em 2020, começasse mais a sério nesta modalidade.

Paralelamente, continuou sempre a trabalhar, tanto na rua como em trabalho de secretária; tanto com horários controlados como por turnos. A organização do dia foi-se fazendo – e continua a fazer-se – com o desporto a ganhar espaço.

Hoje em dia, as pessoas querem saber mais da imagem.

O contacto de Ana não nos chegou por acaso – é atleta da Federação Portuguesa de Ciclismo, e, na voz de uma das principais vozes, uma grande promessa do ciclismo. Apesar de reconhecer mérito em si própria, Ana vê ainda alguns problemas de visibilidade, num mundo onde as marcas muito querem saber da imagem e menos da qualidade.

Este é, talvez, o principal obstáculo que enfrenta. Em prova, os cuidados são redobrados, porque sabe que qualquer deslize lhe custa mais do que um lugar no pódio: pode custar-lhe o valor do arranjo da bicicleta e a presença noutras corridas. É por isso, conta-nos, que é mais prudente.

À falta de patrocínios junta-se a falta de uma equipa, que faz toda a diferença nas provas: “O ciclismo é complexo, e uma pessoa não consegue ganhar sozinha.” Ainda que acredite na diferença que uma equipa lhe traria, espera por um futuro de oportunidades, e vê nos pequenos gestos – dela e dos que a rodeiam – o motor para continuar a viagem.

“Há muitas pessoas que nos apoiam, acreditam em nós e nos dão grande motivação.”
“Há muitas pessoas que nos apoiam, acreditam em nós e nos dão grande motivação.”

Ana diz, com orgulho: “Tudo o que consegui, todas as conquistas, foram à custa do meu esforço.” Mas não esquece a boa vontade, os pequenos e grandes gestos que, no momento de cada corrida, também pesam na garra de vencer. A bicicleta que agora usa em prova, por exemplo, foi conseguida depois de uma brincadeira nas redes sociais, onde anunciava que gostava de uma bicicleta de carbono para o seu aniversário.

Da terra que a viu nascer, a brincadeira tornou-se séria, quando um empresário da zona se manifestou para apoiar a compra de uma nova. Com algum dinheiro que conseguiu juntar, as provas tornaram-se novamente possíveis, e Ana acredita mesmo que este momento definiu a sua continuação no ciclismo: “Com a outra bicicleta, provavelmente não tinha continuado.”

A competir por uma equipa espanhola, os dias de Ana dividem-se entre treinos – “hoje tive de me levantar às 5 da manhã para correr, para poder estar agora aqui!” –, turnos e mais treinos. A cada prova que passa, a força mental fá-la acreditar que merece estar ali, tanto quanto qualquer uma das outras atletas. A cabeça foca-se no objetivo, durante as provas e fora delas: “Quero que me venham buscar para outras equipas, apostar mais no ciclismo, evoluir.”

Ana

Começou há dois anos, mas o sonho passa já por “estar numa Volta a Itália, numa Volta a França”. Ainda que goste verdadeiramente do seu trabalho na PSP, o ciclismo conquistou-a de tal forma que não se importaria de abdicar da realidade por alguns sonhos: “Se eu puder ir mais longe, vou. O céu é o limite.”

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